terça-feira, 15 de outubro de 2013

História do demoníaco Pacheco ("Histoire du démoniaque Pascheco", 1805 ,Manuscrit trouvé à Saragosse... publicado em francês pelo conde polonês Jan Potocki (1761-1815)

 Finalmente acordei pra valer, o sol queimava minhas pálpebras-eu as abria com dificuldade. Vi o céu. Vi que estava ao relento. mas o sono ainda pesava em meus olhos. Não dormia mais , mas ainda não estava desperto..Imagens de suplícios sucederam umas ás outras.Fiquei apavorado.Levantei-me de sobressalto e me sentei. 
 Onde encontrarei as palavras para expressar o horror que então me invadiu ? Eu estava deitado aos pés da forca de Los Hermanos. Os cadáveres dos dois irmãos De Zoto não estavam enforcados e sim deitados ao meu lado. Aparentemente eu tinha passado a noite com eles. descansava em cima de pedaços de cordas apodrecidas, restos de carcaças humanas, e nacos horrorosos e fétidos que delas se soltavam. 
 Ainda pensei que não estivesse bem acordado e que estivesse tendo um sonho ruim.
 Fechei os olhos e busquei em minha memória onde tinha estado na véspera...
 Então senti garras se enfiando em meus flancos. Vi que um abutre tinha se empoleirado em mim e devorava um de meus companheiros de quarto. A dor me me causava a impressão das garras me acordou de vez. Vi que minhas roupas estavam perto de mim, e me apressei em vestir-las. Quando me aprontei, quis sair do recinto da forca, mas encontrei a porta fechada com pregos e tentei quebrá-la, em vão. Portanto tive que subir naquelas tristes muralhas. Consegui, e apoiando-me numa das pilastras do patíbulo, comecei a examinar as terras dos arredores. Reconheci facilmente onde estava. De fato, estava na entrada do vale de Los Hermanos, e perto das margens do Guadalviquir. 
 Como eu continuasse a observar, vi perto do rio dois viajantes, um preparava o almoço e o outro segurava a brida de dois cavalos. Fiquei tão encantado ao ver  aqueles homens que meu primeiro gesto foi gritar "Agour, agour !", o que quer dizer em espanhol "Bom dia!" ou "Salve!"
 Ao ver as cortesias que os eram feitas do alto do patíbulo, os dois viajantes por um instante pareciam indecisos , mas de repente montaram em seus cavalos, saíram todo galope e pegaram a estrada de Los Alcornoques. Gritei para que parassem, mas foi inútil; quanto mais gritava, mais esporeavam os cavalos. Quando os perdi de vista, pensei em sair de meu posto. Pulei para o chão e me machuquei um pouco.
 Mancando bastante, cheguei às margens do Guadalviquir, e lá encontrei o almoço que os dois viajantes tinham abandonado; nada podia vir mais a calhar, pois me sentia exausto. Havia chocolate, ainda cozinhando, e sponhao embebecido em vinho de Alicante,pão e ovos. comecei a recuperar minhas forças , e depois fiquei refletindo sobre o que me tinha acontecido durante a noite. As lembranças eram muito confusas, mas o que me lembro bem era de ter dado minha palavra de honra em guardar tudo aquilo em segredo, e estava firmemente decidido a manter-la. Acertado a esse ponto, só me restava ver o que, por hora, eu devia fazer, ou seja, que caminho pegar, e pareceu-me que as leis da honra me obrigavam mais que nunca a passar por Sierra Morena. 
 Talvez alguém fique surpreso de me ver tão ocupado com minha gloria e tão pouco com os acontecimentos da véspera; mas esse modo de pensar era efeito da educação que eu havia recebido. É o que se verá na continuação desse relato.
 Por hora volto à minha viagem. 
 Estava curiosíssimo em saber o que os diabos haviam feito de meu cavalo, que eu deixara em Venta Queimada; e, aliás, como era o meu caminho, resolvi passar por lá. Tive que percorrer a pé todo o vale de Los Hermanos e o de Venta, o que não deixou de me cansar e de me fazer desejar muito encontrar meu cavalo. De fato o encontrei, estava na mesma estrebaria onde o deixara, e parecia pimpão, bem-cuidado e escovado havia pouco. Eu não sabia quem podia ter tido esse cuidado, mas depois deter visto tantas coisas extraordinárias, essa não me deteve por muito tempo. Teria retomado imediatamente o caminho se não fosse a curiosidade de percorrer, mais uma vez, o interior da hospedaria. Encontrei o quarto onde havia dormido, mas por mais que procurasse , foi impossível encontrar aquele onde eu tinha visto as belas africanas. Assim cansei-me de procurar por mais tempo, montei no cavalo e segui meu caminho.
 Quando acordei ao pé da forca de Los Hermanos, o sol já estava no meio de seu curso. Eu tinha levado mais de duas horas para chegar em Venta. Tanto assim que, depois de umas duas léguas, tive que pensar num abrigo, mas ,não vendo nenhum, continuei a andar. Finalmente avistei de longe uma capela gótica, com uma cabana que parecia a morada de um ermitão. Tudo isso ficava afastado da estrada principal, mas eu começava a sentir fome e não hesitei em fazer esse desvio para conseguir comida. Ao chegar, amarrei o cavalo em uma árvore, depois bati na porta da ermida e vi sair um religioso com aspecto venerável.
 Bejou-me com uma ternura paternal, e depois me disse :
 "Entre meu filho, ande logo. Não passe a noite ao relento, tema o tentador. O Senhor tirou Sua mão de sobre nós".